começamos pela memória

Estamos num ponto da terra cujo oriente é banhado pelo oceano Atlântico Sul, num local que nasce de aldeamentos às margens do Rio Imboaçu, que tem esse nome tupi oriundo da ocupação Tamoio/Tupinambá na região. As antigas aldeias de Araçatyba – Ipiiba, por exemplo – são referenciadas pela abundância de árvores específicas (Araçá, Ipê) que quase não se encontram mais na paisagem atual. Elas são parte do território em que localizamos a cidade de São Gonçalo e seus vários distritos, que reverberam a lembrança dos Rios, da Flora e da Fauna, alinhados à bacia da Guanabara e à Mata Atlântica na latitude e na longitude das memórias. Na costura histórica e linear que quase tudo apaga, percebemos as fazendas do período colonial cujas antigas plantações, com o tempo, atualizaram o que era floresta em empreendimentos imobiliários e industriais, reunindo favelas e canteiros de obra ao longo de uma mesma rodovia.

A ‘Favelinha’ é mais uma das várias comunidades periféricas de São Gonçalo, uma das veias de Tribobó, bairro em que está situada e que carrega no próprio nome uma paisagem alterada. Tribobó faz referência à lagoa do Capote e aos vários córregos de água doce que existiam no período de ocupação colonial, tragados com a chegada da modernidade industrial à cidade.

A partir daqui, articulamos com a memória, com os pés tocando o solo, pois as regenerações não se criam sem a ancestralidade. Re-conhecer a cidade por diferentes leituras movimentam outras relações com a mesma, algo essencial para tratarmos da memória em questão. Neste lugar de movimento, de reencontro com aquilo que já conhecemos – não enquanto uma reprodução, mas como uma retomada de um diálogo antigo, apagado sistematicamente – podemos nos reorientar num contexto de consumo desenfreado e descartes inconscientes que atravessa nossas vidas.

É na memória coletiva que instauramos um tempo outro. É por ela que adentramos um lugar para encontrar a ancestral interespécie, visível e invisível; pois na memória o metabolismo é híbrido, relacionando as camadas de tempo, assentando movimentos e sentidos.

O processo do Terreiro Afetivo na comunidade da Favelinha, em Tribobó, investiga uma memória coletiva, de cunho quase arqueológico, que diz respeito à paisagem local e às alterações provocadas por fatores variados, incluindo nossa própria presença.

No dia 7 de janeiro de 2022, pesquisei em sites de busca a seguinte frase: “comunidade da favelinha, tribobó”. Quase todas as notícias que integram as páginas são memórias de violências recentes, estruturadas a partir de registros policiais. Segundo o Mapa das Barricadas, a cidade de São Gonçalo possui cerca de 100 bairros e mais de 300 barricadas espalhadas pelos mesmos, evidenciando a presença do tráfico no território. Três dessas 300 barricadas se encontram aqui na Favelinha. Isso nos leva a pensar sobre a relação de autoestima construída na e com a paisagem, diante do que se tece enquanto imaginário social na presença e na virtualidade em que a comunidade está inserida.

Quais aspectos embalam a comunidade para além do estigma da violência?

O que há na paisagem para além da barricada?

conceitos e saberes

A ecologia investigada no terreiro afetivo é a que encontramos nas redes geradas em contexto comunitário. Como uma proposta emancipatória, em contraposição à estrutura monocultural de pensamento e ao apagamento onto-epistemológico dos conhecimentos produzidos em comunidade, os conceito de Aquilombamento e Retomada são relacionados com Memória e Futurologias, adensando os saberes locais num emaranhado que leva em consideração a órbita climática da cidade de São Gonçalo, o desmatamento do bioma atlântico, a recuperação do pertencimento à terra e a compreensão de que somos parte do todo. Da construção de um bem viver que experimenta a agroecologia como possibilidade de trocas e composições políticas com a paisagem urbana, cuja articulação se desenvolve com a prática cotidiana.

atividades do terreiro afetivo

Uma série de atividades flutuantes foram articuladas entre os variados públicos da comunidade, tanto como um processo de envolvimento com a proposta do laboratório quanto como uma forma de restabelecer vínculos com a paisagem. Iniciamos com caminhadas afetivas, de reconhecimento do território, seguidas por oficinas práticas de arte e educação ambiental referenciadas pela paisagem. Os consórcios foram planejados coletivamente, utilizando o desenho como ponto de partida para imaginarmos intervenções.

tecnologias sociais implementadas

Em paralelo às atividades educativas elaboradas para o desenvolvimento do terreiro afetivo na comunidade, construímos alguns protótipos destinados ao uso da mesma, como as sementeiras coletivas, as lixeiras sinalizadas com materiais recicláveis e um pequeno forno artesanal para queima de argila. Além da produção e da distribuição do zine ‘herbário anticolonial de bolso’, contendo uma lista de 50 espécies encontradas no território, estabeleceu-se uma agenda ambiental local, que prevê uma semana de atividades elaboradas pelo terreiro afetivo com a Comunidade a cada mês de junho, que demarca o início das nossas plantações.

A presença dos canteiros na comunidade propiciou analisar e costurar um tipo de pedagogia profundamente interessada em micro ações ecológicas cotidianas. Os canteiros daqui, como na maioria das periferias de Abya Yala, são formados por espécies variadas, oriundas de diversos lugares e envoltas em histórias e ensinamentos – logo, memórias!

Pelos canteiros encontramos uma fonte primária de contato, trocas, manejo e cultivo, além de relações de cura, proteção e alimentação. Os canteiros nos propiciam ainda a percepção sazonal da terra e conexões sólidas para conhecer como o ambiente natural funciona em conjunto com a urbanidade.

Trocamos com e entre seus cultivadores; moradores de muito ou pouco tempo que remontam a memória, confabulando o presente a partir do que vigora em seus canteiros.

As relações originárias indigenas e afrodiaspóricas, autorreferenciadas numa memória vegetal, se articulam nos processos de rede e diversidade, próprios da comunidade e de sua forma de experimentar e compor a paisagem. trata-se de um exercício biodinâmico de atualização das práticas ancestrais que dá continuidade às narrativas e saberes tecidos junto à terra, indo contra a lógica monocultural. Os canteiros coletivos permitem o acesso a noções da agroecologia, abrindo caminhos para pensarmos em consórcios, manejos e futurologias em nossas práticas comunitárias. Uma proposta da pedagogia dos canteiros é sugerir tais espaços, áreas verdes coletivas, como parte de uma agência política, cultural e afetiva da comunidade. Que possamos experienciar a vida em abundância, mesmo na ausência de terra. Que possamos quebrar o concreto e regenerar.

Agrofloresta como intervenção urbana de aquilombamento e retomada da vida em diálogo com o território, atuando na produção coletiva de um bem viver. Ao longo do programa Várzea, estabelecemos caminhos entre práticas agroecológicas e biodinâmicas na comunidade, com o objetivo de intervir na paisagem plantando consórcios desenhados nas oficinas e vivências, inspirados sobretudo nos canteiros locais.

Os consórcios agroecológicos plantados na Favelinha têm como função a produção de alimentos, remédios, material orgânico, reflorestamento e a continuidade de uma memória vegetal estabelecida coletivamente. Ao todo são três, interligados no interior da comunidade por suas vias públicas, em espaços de circulação cotidiana. A primeira plantação envolveu espécies locais e outras inseridas, tendo início no inverno de 2022.

No campo / milho, feijão, abóbora, boldo, macassá, elevante, amora, jaqueira, limoeiro, girassol e batata doce;

Na mangueirinha / milho, feijão, abóbora, boldo, macassá, mamona, orirí, pé de abóbora, mandioca, acerola, jaqueira, goiabeira;

No mirante / milho, feijão, abóbora, boldo, macassá, urucum, goiabeira, elevante, laranjeira.